A Lei Federal nº 6.404/1976, em seu artigo 229, define a cisão como a operação societária pela qual uma companhia transfere parcelas do seu patrimônio a uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes. Assim, depender da extensão dessa transferência patrimonial, a companhia cindida poderá ser extinta — quando integralmente despojada de seu acervo — ou apenas ter seu capital social reduzido, no caso de cisão parcial.
As sociedades que absorvem os ativos e passivos da companhia cindida sucedem-na nos direitos e obrigações correlatos. Na hipótese de cisão total, a sucessão abrange inclusive direitos e deveres de natureza geral, não necessariamente vinculados às atividades operacionais da empresa extinta, sempre na proporção do patrimônio líquido transferido.
Isso posto, passando-se para análise licitatória, sabe-se que é recorrente a exigência, por parte da Administração Pública, de comprovação de capacidade técnica como requisito de habilitação. Essa exigência visa assegurar a execução eficiente e satisfatória do objeto contratado, prevenindo contratações temerárias em razão da complexidade de determinadas contratações.
Acerca dessa exigência, Marçal Justen Filho (1994) explica:
“A conjugação de esforços permanentes e a interiorização de valores comuns produz organizações estáveis, cuja existência transcende os indivíduos que a integram. [...] O desempenho profissional e permanente da atividade empresarial conduz ao desenvolvimento de atributos próprios da empresa. Um deles seria sua capacidade de executar satisfatoriamente encargos complexos e difíceis. Utiliza-se a expressão ‘capacidade técnica operacional’ para indicar essa modalidade de experiência, relacionada com a ideia de empresa.”
Não obstante a data da doutrina acima citada, atualmente, é amplamente reconhecida a necessidade de se avaliar previamente a aptidão das empresas licitantes, o que envolve analisar sua experiência na execução de serviços semelhantes. No entanto, quanto à exigência de quantitativos mínimos de experiência, o Tribunal de Contas da União (TCU), ao interpretar a então revogada Lei nº 8.666/1993, manifestou-se de forma reiterada no sentido de que a exigência de comprovação de experiência superior a 50% do objeto licitado pode configurar restrição indevida à competitividade. O Ministro Benjamin Zymler, relator do Acórdão nº 2.383/2007, assim se pronunciou:
“A Lei de Licitações e Contratos não fixa expressamente os percentuais de exigência. A jurisprudência desta Corte tem considerado inadequados os percentuais superiores a 50% [...]. O projeto original da Lei nº 8.666/93 previa, inclusive, a limitação da exigência de quantitativos mínimos a esse patamar.”
Diversos precedentes do TCU reforçam essa compreensão, como demonstram os Acórdãos 1.284/2003, 2.088/2004, 1.908/2008, 1.417/2008, 597/2008, 2.640/2007, entre outros. De forma, a Súmula nº 263-TCU - que mesmo com a revogação da Lei Federal n.º 8.666/1993 e vigência da Lei Federal n.º 14.133/2021 ainda vigora - estabelece:
“Para a comprovação da capacidade técnico-operacional das licitantes, e desde que limitada, simultaneamente, às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto a ser contratado, é legal a exigência de comprovação da execução de quantitativos mínimos em obras ou serviços com características semelhantes, devendo essa exigência guardar proporção com a dimensão e a complexidade do objeto a ser executado.”
No mesmo sentido, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo editou a Súmula nº 24, admitindo a imposição de quantitativos mínimos entre 50% e 60%, desde que tecnicamente justificados.
Também o Tribunal de Contas de Minas Gerais reconheceu a razoabilidade da exigência de experiência equivalente a 50% do objeto licitado, conforme manifestação do Conselheiro Hamilton Coelho (julgado de julho de 2017), e pelo voto do Conselheiro Cláudio Terrão na Denúncia n.º 1.095.564, relator do acórdão publicado no dia 17/03/2022 (pós vigência da nova Lei de Licitações), especialmente quando admitido o somatório de atestados.
Nesse contexto, empresas que sofreram reestruturação societária — por cisão, por exemplo — muitas vezes perdem a capacidade de comprovar sua atuação anterior. Por essa razão, a cisão empresarial surge como meio legítimo e eficaz de viabilizar a transferência da experiência acumulada, especialmente nos casos em que a parcela patrimonial transferida está atrelada à atividade-fim.
Embora ainda relativamente recente no campo das licitações, a cisão da capacidade técnica tem sido cada vez mais aceita pelos órgãos de controle externo. Essa aceitação se deve, em grande parte, à sua utilidade como alternativa legal para empresas em processo de reorganização societária, sobretudo em períodos de instabilidade econômica.
Para tanto, sabe-se que à luz do direito empresarial, a cisão deve observar os requisitos da Lei nº 6.404/1976. Para fins de transferência da capacidade técnica-operacional, é imprescindível que o ato societário seja formalizado, arquivado na Junta Comercial e revestido de boa-fé. Além disso, recomenda-se que a transferência inclua não apenas o acervo técnico, mas também o profissional responsável técnico, o qual deve integrar, ainda que cumulativamente, o quadro societário da empresa incorporadora.
A formalização completa do processo, com respeito às exigências legais e à transparência dos atos praticados, retira da cisão o estigma de “manobra artificial”, consolidando-a como ferramenta legítima no planejamento estratégico de empresas interessadas em participar de certames públicos.
Por fim, destaca-se que, desde 2012 o Tribunal de Contas da União reconheceu, por meio do Acórdão nº 2.444/2012 - Plenário, a possibilidade jurídica da cisão como forma de transferência da capacidade técnico-operacional. A doutrina e jurisprudência vêm majoritariamente acompanhando esse entendimento, conferindo à cisão empresarial um papel relevante na promoção da competitividade e eficiência nas contratações públicas.
[1] FILHO, Marçal Justen. 1994. in Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 13ª ed., p. 420-421.
Vanessa de Oliveira, Advogada.