De forma introdutória, antes de adentrar ao assunto, cumpre esclarecer a estrutura dos setores que compõem a organização socioeconômica contemporânea, o Primeiro Setor corresponde à Administração Pública, subdividida em Administração Direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e Administração Indireta (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista); o Segundo Setor, por sua vez, refere-se à iniciativa privada, orientada à obtenção de lucro; com isso, surge então o Terceiro Setor, constituído por entidades privadas sem fins econômicos, voltadas à promoção de interesses coletivos e sociais, tradicionalmente conhecidas como Organizações Não Governamentais (ONGs) — atualmente denominadas Organizações da Sociedade Civil (OSCs).
As entidades do Terceiro Setor, ao executarem atividades nas áreas da saúde, educação, assistência social, cultura, entre outras, firmam parcerias com o Poder Público e também com entes privados, o que lhes confere natureza híbrida em termos de financiamento. Dessa forma, estão obrigadas a prestar contas da utilização dos recursos públicos recebidos, conforme exigências específicas de seus parceiros.
Sob essa perspectiva, vê-se que o Terceiro Setor desempenha atividades de interesse público, mediante atuação voluntária, sem objetivo de lucro, destacando-se pela busca do bem-estar coletivo. Com o aumento da atuação dessas entidades e a consolidação de suas parcerias com o Estado, notadamente após a promulgação da Lei nº 13.019/2014 — o Marco Regulatorio das Organizacoes da Sociedade Civil (MROSC) —, ampliaram-se os debates jurídicos em torno da gestão de recursos públicos por essas organizações, impondo-lhes o dever de observar os princípios constitucionais da Administração Pública, notadamente, aqueles insculpidos no artigo 37, da Constituição da Republica Federativa do Brasil, que assim dispõe:
A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:[...].
Portanto, ainda que detenham personalidade jurídica de direito privado, as OSCs, ao manejarem recursos públicos oriundos de contratos de gestão, termos de fomento, de colaboração ou convênios, devem submeter-se aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, especialmente no que se refere à contratação de pessoal.
Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União já se manifestou pela obrigatoriedade de observância aos princípios retro na contratação de empregados para atuação em serviços vinculados a contratos de gestão com o Poder Público, dispensando, porém, a exigência de concurso público:
“Não é necessário concurso público para organizações sociais selecionarem empregados que irão atuar nos serviços objeto de contrato de gestão; entretanto, durante o tempo em que mantiverem contrato de gestão com o Poder Público Federal, devem realizar processos seletivos com observância aos princípios constitucionais da impessoalidade, publicidade e moralidade.”
(TCU, TC n. 018.739/2012-1, rel. Min. Walton Alencar, julgado em 27/11/2013).
A diretriz acima está alinhada ao artigo 37 da Constituição Federal, que exige concurso público para investidura em cargos públicos, ressalvadas as hipóteses de nomeação para cargos em comissão de livre nomeação e exoneração. Todavia, como as OSCs não integram a Administração Pública direta ou indireta, não se sujeitam à exigência de concurso. Bastando, em regra, a realização de processo seletivo simplificado.
O processo seletivo simplificado, por sua vez, consiste na divulgação de edital objetivo, com normas reduzidas, mas que assegurem critérios mínimos de publicidade, impessoalidade e eficiência. As diretrizes para esse processo devem estar previstas no Regulamento de Compras e Contratações (RCC) da entidade.
Entretanto, até mesmo quanto ao processo seletivo simplificado, a jurisprudência das Cortes de Contas admite exceções a sua realização, como nos casos de calamidade pública, contratações emergenciais ou de natureza temporária, bem como na nomeação de cargos de confiança.
Os chamados "cargos de confiança" caracterizam-se por exigirem do ocupante funções de direção, chefia ou assessoramento, conferindo-lhe autonomia decisória e responsabilidade compatível com a de um gestor, inclusive com a dispensa do controle de jornada. Contudo, tem-se verificado o uso indevido dessa classificação, com a nomeação para funções eminentemente técnicas, o que descaracteriza a natureza de confiança do cargo.
A esse respeito, destaca-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
“Violação ao art. 37, II e V, da Constituição. Os cargos em comissão criados pela Lei 1.939/1998 do Estado de Mato Grosso do Sul possuem atribuições meramente técnicas e que, portanto, não possuem o caráter de assessoramento, chefia ou direção exigido para tais cargos.”
( ADI 3.706, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 15/10/2007, DJ de 05/10/2007).
Dessa forma, é essencial a análise das funções efetivamente desempenhadas pelo contratado, a fim de verificar se trata, de fato, de cargo de confiança. À exemplo disso, tem-se que duas contratações com a mesma nomenclatura podem possuir enquadramentos jurídicos distintos, conforme as atribuições atribuídas.
Além disso, considerando a origem pública dos recursos utilizados no pagamento desses profissionais, é recomendado que os valores remuneratórios estejam em consonância com a média praticada no mercado, mesmo quando a contratação ocorrer de forma direta, como forma de resguardar ao erário.
Em conclusão, a contratação de cargos de confiança no Terceiro Setor com utilização de recursos públicos prescinde da publicação de edital de concurso público, desde que observados os critérios legais e constitucionais. Incumbindo ao gestor avaliar detidamente se o cargo detém as características necessárias — direção, chefia ou assessoramento —, bem como se o contratado exercerá a função com autonomia decisória e sem controle de jornada. Tal cautela visa resguardar a legalidade do ato administrativo, preservar a moralidade na aplicação dos recursos públicos e assegurar a conformidade com os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais vigentes.
[1] RCC - Regimento criado por cada Organização, por liberalidade da Diretoria, que deve ser observado na execução das Compras e Contratações.
Vanessa de Oliveira, Advogada.